Resenha de uma vida
Tudo começou aos poucos. Como deve ser. Um dia de verão,
ela nasceu. E com ela, muitos sonhos.
Aos cinco já pensava em ser escritora, poetisa, literária
que fosse. Aos doze achava que o mundo eram suas palavras, e nada podia mudar.
Mas mudou. As palavras viraram sentenças de vida.
Seus sonhos cresceram até não caberem mais em sua cabeça
avoada. Escreveu. Pôs tudo para fora. Até que deu certo. Tudo parecia estar se
encaixando, finalmente.
Seus pais se separaram na idade de dez para onze. Como se
lembrar disto? Ela pediu para ele escolher, ele escolheu. Disse que não, para
não magoá-la. Mas escolheu. E ela soube, soube que era aquele momento que a
marcaria para sempre em seu relacionamento.
Sua mãe era seu sustento, mas mal sabia ela que seria
ainda muito mais, mais do que poderia imaginar!
Alguns anos depois, a vida foi correndo. Andando para lá
e para cá, ela nem se percebeu vivendo. Foi fácil até. Ou será que foi difícil?
Hoje ela mal se recorda, mas ela sentiu fundo, tudo aquilo. Dentro de seu
coração.
Aos quatorze ganhou um irmão. Ela achou que aquilo fosse,
de certa forma, mudar alguma coisa. Não mudou. Mudou que a renúncia. Mudou o
pecado. Agora odiar não era mais possível. Ela amava. Amava seu irmão, mas
amava também sua vida longe dele, longe deles.
Renunciou. Foi esquecendo-se aos poucos, assim como no
começo. Guardou a mágoa e as palavras não ditas num lugar escuro de sua mente.
Por que o coração nada guarda, só sente.
Ganhou uma cadelinha. Foi só felicidades. Uma companheira
para chamar de sua, finalmente. Ainda tinha a mãe. Mas as duas não se
entendiam. Pareciam falar línguas diferentes. O que aconteceu entre as duas?
Ela ainda era seu chão, claro, sempre.
Aos dezesseis começou o tormento. Seu mundo se despedaçou
quando o conheceu. Quando conheceu seu passado. Quando conheceu seu carma, seu
futuro, seus pecados.
O primeiro corte foi difícil. O décimo foi mais fácil. O
choro continuava o mesmo, mas os por quês desapareceram. Então por que o choro?
Cortou de sua vida seu motivo. Cortou de sua vida seu perdão. Não havia espaço
para ninguém entrar.
Suas palavras se calaram. Como havia de ser? Elas sempre
foram suas confidentes! Entretanto, elas não pareciam mais querer sair.
Pareciam deslocadas em meio aos arranhões de sua alma.
Conversou com seu primeiro terapeuta. Ele lhe abriu os
olhos. Ela tinha um por quê: ela.
Ela era tudo em sua vida. Será que ela sabia disso? Mas
ela queria outra vida. Uma vida melhor. Uma vida sem sofrimento, com
sentimento. Ela não era capaz de receber tanta pressão. De ser o único motivo.
Era demais para ela. Ela cedeu.
Quando a viu chorar pela primeira vez, seu chão se abriu.
Ela era o seu por que, e, ainda assim, ela tomou a pílula.
O remédio para o corpo não era o mesmo remédio para a
alma. Não adiantou. Ficou uns dias no hospital, mas isso era só.
Ela tinha sonhos estranhos, falava sozinha, cantava alto
no meio da rua. Parecia ser louca. Será que não o era? Mas o que será a
sanidade, de certa maneira?
Achou que tinha a solução. Não tinha nada. Sonhou. E alguém
lhe disse que era possível. Talvez realmente fosse. Não acreditou. Quem
acreditaria, afinal de contas?
Entrou para a faculdade. Talvez aí estivesse a resposta.
Na academia. Onde sempre passou parte de seus sonhos. Dando aulas e
assistindo-as. Ela era uma aluna nata, sempre foi.
Não encontrou ninguém para chamar de seu. Não encontrou
as tão sonhadas respostas.
O tempo passou. O cabelo esticou. As unhas cresceram, a
mulher nasceu da menina. O orgulho também. Mandou todos irem cuidar de suas
vidas. Para quê? Para se libertar. Queria ser. Ser sozinha. Arrumou até um
emprego. Outro e depois mais outros. Agora sim, essa deve ser a solução.
Cresceu não foi mesmo?
Sentiu falta da menina que costumava ser, dos amigos que
costumava ter, dos sonhos que costumava sonhar, agora ela era pé no chão. Tinha
perdoado e pedido perdão. Mas as coisas não vêm do jeito que queremos.
Pecou por fazer tudo sozinha. Apaixonou-se pela pessoa
errada. Como sempre fazia. Doeu. Machucou mais do que riu.
Conheceu pessoas que a decepcionaram, se decepcionou com
as que já conhecia. Não importa, a vida passa, as pessoas mudam. Conheceu
também as que valeram a pena ter conhecido. Até que teve seus momentos. Não viu
o mundo como queria. Não viajou, não conheceu culturas.
Será que isso faz dela triste? Faz sonhadora, com
certeza. Teve outras coisas, claro.
Foi saudosa lembrar dos tempos passados. Chorou de emoção
ao ver o quanto era amada naqueles tempos. Talvez ainda fosse, quem sabe?
Conhecia mais músicas do que poderia contar, sabia mais
nomes do que poderia lembrar. Virá mais filmes do que poderia sonhar. Beijou e
amou. Abraçou e se deixou ir à seu cheiro. Decepcionou-se, mais uma vez, quem
nunca?
Fez, finalmente, as pazes com as palavras. Elas são suas
amigas novamente. A fazem boêmia, a fazem especial, uma entre tantas.
Publicou até um livro. Um sonho realizado.
Está planejando outro(s). Talvez só queira viver em paz,
já pensaste nisto? Por um dia de paz ela pagaria uma fortuna toda que não tem.
Trocaria uma viagem ao redor do mundo pela paz em seu mundo. Em sua mente.
Lá, há pessoas que gritam. Pessoas incertas, pessoas
nervosas, pessoas ansiosas, pessoas que choram.
Ela só quer sorrir. Rir. Perder, ganhar; jogar.
Quer fazer uma tatuagem, achar um amor para a vida
inteira – quem sabe um por alguns meses, bastaria.
Não quer se livrar de suas memórias. Como poderia
escrever novamente, sem elas? Sem a dor, sem a melancolia? Por isso, não quer
arrancar as fotos das paredes do quarto. Não que se livrar dos bichinhos de
pelúcia, das cartinhas das colegas do colégio, da caneta francesa que nem
escreve mais.
Quer talvez pedir perdão. Se sentir perdoada. Amada.
É pedir demais?
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